30/12/09

Feliz Ano Novo




Recomeça….

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

23/12/09

Feliz Natal


Falavam-me de amor

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.

Natália Correia in O Dilúvio e a Pomba

16/12/09



De dia correm nuvens, flutuantes!
De noite vivem estrelas, cintilantes!
Se ousares subir tocando em cordas puras,
Entoarás a eterna música das esferas.


Johann Wolfgang Goethe, in O jogo das nuvens

12/11/09


Não sei para que lado da noite

Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.

Carlos Alberto Machado in Talismã

31/10/09



Silentium

Speak not, lie hidden, and conceal
the way you dream, the things you feel.
Deep in your spirit let them rise
akin to stars in crystal skies
that set before the night is blurred:
delight in them and speak no word.

How can a heart expression find?
How should another know your mind?
Will he discern what quickens you?
A thought once uttered is untrue.
Dimmed is the fountainhead when stirred:
drink at the source and speak no word.

Live in your inner self alone
within your soul a world has grown,
the magic of veiled thoughts that might
be blinded by the outer light,
drowned in the noise of day, unheard...
take in their song and speak no word.

Fyodor Tyutchev (trad.de Vladimir Nabokov in Three Russian Poets)

29/09/09



Poema

Eleges o lugar da ferida
onde falamos o nosso silêncio.
Fazes da minha vida
esta cerimónia demasiado pura.

Alejandra Pizarnik in Antologia Poética

23/09/09



37° 52' 5.08" N 25° 47' 35.96" W

20/09/09



eu, gaivota
sobrevivente de tempestades
voo planando sobre o teu corpo ilha
e nem os ventos contrários que fustigam as asas
impedem-me o verde

11/09/09



existe sempre ontem na memória que me enche de
sonhos, os teus dedos tocam-me dentro dos sonhos.
nos teus lábios, imagino beijos. perdi-me no mundo.

José Luís Peixoto in “A casa, a escuridão”

05/08/09


Imagem: Helena Monteiro - Caneta/pincel com tinta da China

Quando amanhece penso:
Encontro-te no vento
virás abraçar-me como os ramos da árvore
e chegaremos ao coração da cidade

Ao meio-dia sei:
A distância do meu corpo ao teu grito
corresponde à do teu sopro ao meu ouvido
eis a anatomia do silêncio

De tarde fico exausta:
Circulo pelas ruas e roço-me nas praças

À noite adormecemos:
Será que te lembras? será que me lembro?

Amanhã alegro-me de novo:
Imagino a floresta, parto o espelho
e recomeço a ir ao teu encontro.

Teresa Balté in Poesia Quase Toda

25/07/09


Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, Quem tens lá no fundo?
É Esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma: será dia!

Álvaro de Campos - Obras Completas

22/07/09

especialmente hoje


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
...

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio

Mia Couto in Desencontros

17/07/09


Sables mouvants

Démons et merveilles
Vents et marées
Au loin déjà la mer s'est retirée
Démons et merveilles
Vents et marées
Et toi
Comme une algue doucement carressée par le vent
Dans les sables du lit tu remues en rêvant
Démons et merveilles
Vents et marées
Au loin déjà la mer s'est retirée
Mais dans tes yeux entrouverts
Deux petites vagues sont restées
Démons et merveilles
Vents et marées
Deux petites vagues pour me noyer.

Jacques Prévert in "Paroles"

11/07/09


Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer

a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrerem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas

um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz

quero morrer
com uma overdose de beleza


e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador

Al Berto in O Medo

01/07/09


Onde tu pousas as mãos,
naturalmente
eu vou pousar as minhas. Um silêncio
faz-se pela casa, uma luz coada vem da janela
e cobre os móveis de uma poalha
doirada. Os objectos estão quietos
como nunca.

Onde tu pousas as mãos,
onde tu pousas mesmo se brevemente as mãos,
torna-se íntima a percepção que se tem de cada hora,
de cada amanhecer,
de cada exacto momento. O entardecer
é só um vasto campo que se abre,
um rumor de folhas que restolham no jardim.

Escrever é ler,
ler é escrever - eu sei isso
porque em cada sítio onde [do meu corpo] tu pousaste as tuas mãos
ficou escrito - eu vejo-o: nítido -
sobre o mais frágil espelho dos sentidos, uma palavra que se lê
de trás para diante. Quando te deitas eu sinto-lhe o perfume,
que é o da noite que entra pela janela.

E onde tu pousas as tuas mãos faz-se um rio
de prata e de quietude mesmo nas minhas mãos
que pousam onde as tuas foram antes procurar
a quietude, procurar as tuas mãos. São exactas as tuas mãos,
são necessárias, têm dedos
que são os filamentos de gestos que descrevem na penumbra
desenhos tão perfeitos que surpreendem.

Onde tu
pousares as tuas mãos
eu quero estar.
Exactamente como a sombra
cai na sombra. A água
na água. O pão
nas mãos.

Bernardo Pinto de Almeida in Hotel Spleen

25/06/09


as palavras hibernam
nas cores esbatidas de lentas madrugadas
áridas sonolentas as mãos pausam
na ausência da tua pele poema

ate que o tempo acorde

24/06/09



há mortes que não sabem que a morte

é um verso que deixa

destroços


como um grande naufrágio



Maria Azenha

28/05/09



distendem-se as asas
ensaio o voo...

que nas tuas mãos molda-se a miragem do mundo novo

25/05/09



"...Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo..."

17/05/09


o teu rosto à minha espera.o teu rosto
a sorrir para os meus olhos.existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos finas e claras.vês-me
sorrir. brisas incendeiam o mundo.
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de Outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos.
este dia será hoje na memória.

hoje compreendo os rios.a idade das
rochas diz-me palavras profundas.
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luis Peixoto in «A casa, a escuridão»

09/05/09

03/05/09



entre cinzas despontam horizontes límpidos
e da tua voz promessa, madrugadas sem bruma

tão simples
como o sopro do vento que embala a flor…

01/05/09


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen

18/04/09



“Um dia, quando a ternura for a única regra da manhã, acordarei entre os teus braços, a tua pele será talvez demasiado bela e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor. Um dia, quando a chuva secar na memória, quando o Inverno for tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da nossa janela, sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar a perfeição da felicidade.”

José Luis Peixoto in A criança em ruinas

14/04/09


era Fevereiro e nascia a Primavera
tu desenhavas-me campos de flores
e um sol tão grande que me aquecia
era Fevereiro nascia a Primavera

e eu aprendia o nome das cores…

10/04/09

05/04/09


Reconhecimento à Loucura

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar

José de Almada Negreiros in Poemas

31/03/09


Abril
prenúncio latente de horizontes
largos

rota traçada a girassóis...

29/03/09


AZUL DE TI

Pensar en ti es azul, como ir vagando
por un bosque dorado al mediodía:
nacen jardines en el habla mía
y con mis nubes por tus sueños ando.

Nos une y nos separa un aire blando,
una distancia de melancolía;
yo alzo los brazos de mi poesía,
azul de ti, dolido y esperando.

Es como un horizonte de violines
o un tibio sufrimiento de jazmines
pensar en ti, de azul temperamento.

El mundo se me vuelve cristalino,
y te miro, entre lámparas de trino,
azul domingo de mi pensamiento.


Eduardo Carranza in Antologia Poética

23/03/09


Na voz que emana o canto
ensaia-se o tímido planar da gaivota

nas notas uníssonas
apazigua-se a alma

17/03/09


No dorso do teu olhar alado
recuso o abismo
rasgo nevoeiros em voo picado
desfaço teias, sopro névoas

e vejo-te com olhos de alma liberta

20/02/09


apago sombras, o medo
tons de cinzento e o negro
que a alma pode ser tela
óleo, aguarela

salpicada de arco-íris

16/02/09


Canción del amor prohibido

Sólo tú y yo sabemos lo que ignora la gente
al cambiar un saludo ceremonioso y frío,
porque nadie sospecha que es falso tu desvío,
ni cuánto amor esconde mi gesto indiferente.

Sólo tú y yo sabemos por qué mi boca miente,
relatando la historia de un fugaz amorío;
y tú apenas me escuchas y yo no te sonrío...
y aún nos arde en los labios algún beso reciente.

Sólo tú y yo sabemos que existe una simiente
germinando en la sombra de este surco vacío,
porque su flor profunda no se ve, ni se siente.

Y así dos orillas tu corazón y el mío,
pues, aunque las separa la corriente de un río,
por debajo del río se unen secretamente.


José Angel Buesa in Babel

04/02/09


aquieta-se a alma no silêncio
ânsia de escutar bater de asas
sobra urgência de mãos na noite adiada

talvez seja tarde
talvez madrugada...

31/01/09


Há um caminho marítimo no meu gostar de ti.
Há um porto por achar no verbo amar
há um demandar um longe que é aqui.
E o meu gostar de ti é este mar.

Há um Duarte Pacheco em eu gostar
de ti. Há um saber pela experiência
o que em muitos é só um efabular.
Que de naugrágios é feita esta ciência

que é eu gostar de ti como um buscar
as índias que afinal eram aqui.
Ai terras de Aquém-Mar (a-quem-amar)

naus a voltar no meu gostar de ti:
levai-me ao velho pinho do meu lar
eu o vi longe e nele me perdi.


Manuel Alegre

27/01/09


Já sei que primeiro vê-se a estrela do futuro,
antes do futuro vê-se a estrela
dizem que a estrela está quase pronta
para ser vista pela primeira vez uma madrugada
e assim todos os dias
sempre
até que eu acabe


Almada Negreiros in Segunda Manhã

22/01/09


das palavras à ternura
suspende-se a alma

entre o salto e a rede
subtraem-se medos...

18/01/09



o vento castigando os ramos da velha laranjeira, indiferente ao pio agoniado das gaivotas que adivinham o aproximar da tempestade
sobre as letras de um poema de Rilke dançam as sombras quentes da vela
nas mãos de Menuhin o arco desliza no violino pintando de suave nostalgia as paredes da sala

houvesse um Domingo perfeito e tu estarias aqui…

16/01/09

...da noite só o poema por encontrar
e o bailado murmurante dos fantasmas
ergue-se lentamente a manhã
tentando rasgar a bruma

árdua e inglória tarefa

07/01/09


Lá fora, não sei onde
- talvez dentro de mim -
ouço o ranger dum barco
na invenção das ondas
aladas no vento...


José Gomes Ferreira